A importância da experiência vivida (2)
 
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A importância da experiência vivida (2)

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altAo estarmos na presença uns dos outros, identificamo-nos, mas não estabelecemos analogias ou projeções pois sentimo-nos mutuamente copresentes numa verdadeira e profunda conivência.

Só conhecemos os outros a partir de uma experiência relacional (de coexistência) que com eles estabelecemos intencionalmente através de uma perceção (consciência) com o percebido.

Consciência percetiva e sujeito de um comportamento em permanente diálogo com os outros e o mundo, em que os outros nos aparecem numa copresença inerente à filosofia da intercorporeidade e do inconsciente, onde a vivência percetiva constitui a base em que assenta a nossa aquisição de conhecimento.

Tudo o que tem a ver com a nossa relação com os outros, não pode assim ter como ponto de partida um “Eu” tendencialmente egocêntrico. “Já que ao nível concreto e originário da experiência vivida a existência do outro parece ser desde sempre uma evidência – uma evidência “testemunhada” corporeamente, por exemplo, num olhar que prende, num abraço que se partilha imediatamente, numa palavra que toca, ou numa carícia que arrepia.“ (1)

Uma vocação intersubjetiva e inconsciente do nosso corpo vivido, continuadamente levada a cabo através de uma experiência percetiva incorporada. “O problema do outro não seria sequer concebível se, antes de qualquer distinção ou separação intransponível entre “eu” e o “outro” e a um nível originário a experiência vivida não fosse sempre uma experiência intersubjetiva desvendada pelos “poderes desconhecidos” do corpo- se não fosse, portanto, digamo-lo desde já, uma relação intercorporal ou intercorpórea.“(2)

Este saber do corpo vai dando significado ao que experienciamos, envolvendo-nos num sentimento de pertença em que os objetos (3), os espaços e lugares, os outros (4) se desvendam como o outro lado da intencionalidade motora. Convivemos afinal com os outros como se fosse connosco próprios, somos partes de um mesmo fenómeno que os outros e nós integramos em simultâneo. “A possibilidade de que falamos forja-se num plano bem mais fundo da corporeidade vivida do que o mero aparecer fenomenal do corpo como “meu” frente a um “outro”; tal possibilidade depende antes da troca de esquemas corporais que, pré-intencionalmente fazem o curto-circuito da distinção vulgar entre interior e exterior, imanência e transcendência. Dir-se-ia que os esquemas corporais oscilam num ritmo partilhado, obrigando a supor, para começar, que a fenomenalização do “meu” esquema é, ao mesmo tempo, fenomenalização do fenómeno do fenómeno outro do esquema corporal do outro enquanto tal no mesmo aceno de fenomenalização.“(5)

Entre nós e os outros existe uma relação de coexistência e perceção mútua, que encontra em cada um de nós o prolongamento das nossas intencionalidades; o meu corpo e o dos outros, coexistem no mesmo mundo como um todo, tornando-se coniventes na respetiva subjetividade e intercorporalidade. “Não é por um corpo vivo ter comportamentos percetivos que algo se percebe, (por restrição do ser ao ser percebido), na sua realidade; é porque o mundo natural se define como essencialmente sensível que pode ser percetivamente percebido. A intencionalidade prática não pode compreender-se apenas a partir da reflexividade corporal; tal capacidade percetiva é outro sim sustentada pela organização da teia ou camada que não é nunca um “mundo em bruto”, mas já sempre um “espaço inter-mundano”, um “intermundo”, enfim um “ser intercorpóreo” onde se cruzam ante predicaticamente “os olhares” e se sobrepõem as nossas perceções.(6)

Ao nível da relação intercorporal e intersubjetiva as nossas emoções não são simplesmente estados mentais; estão corporalizadas e percecionáveis nas diferentes circunstâncias em que nos relacionamos e interagimos. Intersubjetividade que para Merleau-Ponty está diretamente relacionada com a incorporação sempre presente ao estarmos no mundo através da nossa consciência percetiva. Corporeamente, lançamos olhares que prendem, palavras que tocam, carícias que arrepiam (7), numa experiência vivida assente numa relação intercorporal indicativa de uma clara vocação intersubjetiva, anonimamente desenrolada pelo corpo e onde o sentido primitivo da intersubjetividade é trazido pelo aparelho significante, cognoscente do corpo anónimo.

Para Merleau-Ponty a perceção do outro envolve assim, co-existência e cooperação. Estas capacidades, segundo Gallagher, dizem-nos que, “a intersubjetividade primária consiste em capacidades sensório-motoras inatas ou de desenvolvimento-precoce que nos colocam em relação com os outros e nos permitem interagir com eles. Estas capacidades manifestam-se ao nível da ação e da experiência percetiva orientada para a ação- vemos ou em geral percecionamos nos movimentos corporais, gestos, expressões faciais, direcionamento dos olhos, entoação vocal, etc., das outras pessoas, o que tencionam fazer e o que sentem, e respondemos com os nossos próprios movimentos corporais, gestos, expressões faciais, olhar, etc. A este respeito a perceção é perceção-para-a-ação ou perceção em ação e não observação desconectada.”(8)

Para Merleau-Ponty, tudo o que se refere à nossa comunicação intersubjetiva encontra-se profundamente interrelacionado com as nossas experiências corporalizadas e afetivas. “Existe uma intencionalidade corporal (ou motora), distribuída através dos agentes em interação, uma intencionalidade que não poderia ser realizada sem a ocorrência efetiva da interação. O significado, a intencionalidade da ação individual reside na interação. Ou seja, nos casos de interação as intenções de alguém não se formam unicamente no seu corpo individual, como resultado de um processo subjetivo isolado, mas dependem de uma maneira dinâmica, das solicitações e respostas dos outros. A intercorporalidade envolve influência mútua de esquemas corporais, uma resposta dinâmica e enactiva (enactive) à ação de outrem, tomando esta ação com uma oportunidade para ações e interações subsequentes.”(9)

Afinal, “aprendemos sobre o mundo e aprendemos como nos envolver com as coisas por intermédio da interação e ação conjunta, intercorporal com os outros. Aprendemos o que é importante, o que é relevante, o que é aceitável, etc., justamente a partir destas interações”(10). No fundo, na presença uns dos outros, experimentamos uma ressonância continuada entre as expressões e os comportamentos dos que nos rodeiam e a nossa própria capacidade expressiva. E o conhecimento do corpo não está em oposição ao intelectual, mas sim ambos se encaixam um no outro e se sustentam mutuamente.

Quando num determinado meio ambiente pretendemos dirigir-nos para, ou afastar-nos de pessoas ou objetos, não temos primeiro a respetiva perceção e só depois reagimos. A perceção e o movimento formam um sistema que age como um todo e, nesse momento, qualquer experiência (visual, táctil, etc.) nunca decorre em separado mas sim de modo integral, reagindo em função daquilo com que nos deparamos (uma determinada situação ou pessoa) e através do corpo todo (do ser global).


1 - Umbelino, Filosofia do corpo e inventário da dor, (II), 301.
2 - Umbelino, Filosofia do corpo e inventário da dor, (II), 303.
3 - Veja-se este exemplo: ao pretendermos utilizar uma cadeira, o corpo ensina-nos como utilizá-la e, se não existisse corpo, não existiria cadeira separada do corpo, como também não existiria o movimento de nos levantarmos da cadeira, comer sentado numa cadeira, etc. Existe um saber utilizar aquela cadeira que nos é dado pelo corpo. Tudo isto a ilustrar uma familiaridade antiga entre corpo anónimo e cadeira e a expressar a relação fundamental entre o corpo e o espaço.
4 - Para Merleau-Ponty, “quando o meu olhar se cruza com o olhar do outro, eu registo essa existência estranha através de uma espécie de reflexão.” (Phénoménologie, 409).
5 - Umbelino, Filosofia do corpo e inventário da dor, (II), 307.
6 - Umbelino, Filosofia do corpo e inventário da dor, (II), 309.
7 - Umbelino, Filosofia do corpo e inventário da dor, (II), 302.
8 - Gallagher, Fenomenologia da intersubjetividade, 570.
9 - Gallagher, Fenomenologia da intersubjetividade, 574.
10 - Gallagher, Fenomenologia da intersubjetividade, 576.


Jorge Araújo
Presidente da Team Work Consultores

 


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